Relato de parto normal (cheio de intervenções desnecessárias) em Botucatu SP - 2004
Pari em hospital escola. A violência já começou no
pré-natal, quando a médica fazia o toque desnecessário e, em seguida um ou dois
residentes. Cheguei no Hospital Sorocabana em Botucatu às 7 horas da manhã, com
contrações ritmadas de 5 em 5 minutos. Fiquei esperando de pé, no corredor
gelado e vazio do hospital, onde o único apoio que eu tinha era o bebedouro e
meu marido. Eu gemia alto e as dores aumentaram consideravelmente por causa do
frio e por não ter nada pra me apoiar, que me deixasse em uma posição
confortável. Não sei quanto tempo fiquei ali. Uma enfermeira veio, me olhou, e
me mandou embora pra casa sem nem mesmo fazer a auscuta fetal pra ver se os
BCFs do meu filho estavam ok. Ela me falou “iiiih, vai pra casa, porque isso aí
ainda vai piorar muito! Esse bebê só vai nascer amanhã, e olhe lá!”. Me liberou
pra comer o que quisesse, graças a deus! Fui pra casa, sem vontade de voltar
pro hospital, mas voltei logo em seguida. A enfermeira não gostou, me chamou de
fresca e que se eu estava gemendo alto daquele jeito naquela hora, imagine no
dia seguinte! Falou que era pra eu esperar (ali, naquele corredor gelado),
porque a médica estava tomando café da manhã.
Esperei, não sei quanto tempo, não deve ter sido muito, mas
parecia uma eternidade. Meu marido estava comigo, então me agarrei nele.
Precisava me apoiar e ele foi meu apoio.
Algum tempo depois chegou um residente. Me mandou entrar
numa salinha. Meu marido quis entrar, ele falou que não era pra entrar, que não
era permitido. Me fez subir naquelas escadinhas (pra mim dar um passo era
difícil) e deitar naquela maca fininha. Entre uma contração e outra eu ainda
perguntei: “e precisa mesmo fazer isso?” Ele só disse que sim. Pensei que fosse cair. Eu, que desde o quinto
mês de gestação não conseguia me deitar de costas, só de lado, fui obrigada a
me deitar de costas em pleno trabalho de parto! Me deitei. O médico fez o
toque. A médica, professora chegou com um batalhão de residentes. Segundo meu
marido eram mais de 10. Acredito que ela aproveitou que estavam todos saindo do
café da manhã pra dar a aula dela. O residente falou que estava com 9 cm de dilatação. A médica
fez o toque, mandou outro residente fazer o toque. Sim, certo, 9 cm ... “vamos estourar a
bolsa”. Eu gritei que não era pra estourar a bolsa (não tinha como falar de
outra forma). Ela me perguntou: “e por quê não?” E estourou. Eu sabia que
estourar a bolsa poderia causar um prolapso de cordão... mas ali naquele
momento, eu não tinha forças pra argumentar... meu marido, meu defensor, estava
do lado de fora assustado.
Me mandaram levantar e ir pra sala de cirurgia. Me
desesperei “não, não, eu quero parto normal!”. Falaram que era lá que eu ia
parir. Precisava ir correndo porque já ia nascer. Precisei me levantar da maca,
descer as escadinhas e ir andando a passos lentos. Antes disso me fizeram tirar
o vestido e colocar aquele aventalzinho do hospital, que começou a cair do meu
ombro (pois eu não consegui amarrar) e o avental escorregou pros meus braços...
eu semi nua toda ensangüentada andando pelo corredor, colocava as mãos por
baixo, sentia que meu filho estava nascendo, travava nas contrações com medo
dele cair. E meu marido assustado me viu e foi me ajudar. O impediram. Ele
começou a brigar, a bater boca, queria entrar comigo. Foi impedido. Eu acenei
com a mão pra ele ficar quieto. Fiquei com medo do que poderiam fazer comigo.
Continuei andando e segurando com as mãos, de medo do meu filho nascer e cair
no chão.
Entrei na sala de cirurgia.
Subi novamente nas escadinhas, me deitei na maca... muita dor pra
deitar. Pediram que eu abaixasse a bunda pra encaixar minhas pernas nos
estribos. Assim fiz. Quando me deitei
senti que o meu filho que já estava nascendo parou... perdi a força das
contrações. Começaram a me mandar fazer força. Eu não tive vontade. A
enfermeira falou “você não queria parto normal? Se quiser parto normal faça
força, porque se não nascer em 15 minutos, vai ser cesárea. Segura nesses
ferros e faça muita força!” Eu segurei nos ferros e fiz muita força... mas
sentia que não ia, não dava. As contrações tinham ficado fracas, aquela posição
não ajudava, era horrível, doloroso... A médica ia descrevendo meu quadro pros
estudantes e ia falando dos procedimentos. Deu ordem pra alguem subir na minha
barriga e empurrar e avisou que ia fazer um “cortezinho” pra “ajudar” a sair.
Os residentes todos olhando, conversando. Avisou que ia colocar o fórceps, mas
depois desistiu. Já estava nascendo. Ela queria demonstrar o “passo a passo”
pros residentes. Me pergunto aqui se os residentes aprenderam que todos aqueles
procedimentos tem risco. Que são dolorosos. Que são desnecessários. Me pergunto
aqui se esses estudantes são capazes de
fazer questionamentos sobre os procedimentos que aprenderam. Me pergunto aqui
se aqueles residentes entendem que a mulher tem direito sobre o próprio corpo e
sobre o que será feito nele. Me pergunto aqui se são capazes de entender a
importância que o nascimento de um filho tem pra mulher, pro pai, pra família e
pra vida toda. Eu neguei a ruptura artificial da bolsa, mas me entreguei a todo
o restante pensando na frase clássica: “se o estupro é inevitável, relaxa e
goza”. Um residente fez os pontos da episiotomia, errados. A professora mandou
desfazer e refazer. Eu sentia a agulha espetando e me costurando, sem anestesia.
Ela deu ordem pra fazer o ponto do marido.
Meu filho nasceu e eu não o vi. Quis me levantar e ir atrás
dele, me deram ordem pra ficar quieta, porque estava com hemorragia. Eu só
queria chorar, aquele não é o parto da lagoa azul, como tinha imaginado. Tinham
campos (aqueles panos) na minha frente. Eu não o vi, mas ouvi o choro
desesperado dele em uma pia, enquanto uma mulher fazia os procedimentos também
desnecessários e dolorosos com ele. Eu queria chorar também. Me mostraram ele
já de roupinha, não me deixaram sequer pegá-lo no meu colo e sentir seu cheiro.
A mulher me deu ordem: “beija ele, mãe, nem parece que ta feliz!”. Eu não estava mesmo. Rejeitei ele naqueles primeiros minutos. 42 semanas esperando... nem me
deixaram olhá-lo direito. Eu pedi pra ficar com ele, a mulher negou. Falou que
era pra eu descansar, dormir porque eu nunca mais ia dormir na vida. Avisou que
só em duas horas eu poderia vê-lo. Eu queria ele comigo, pedi meu marido...
finalmente deixaram ele entrar. Ele me deu um beijo, falou que eu era muito
forte, que nosso filho era lindo e que ia atrás dele. Ele ficou olhando o Pedro
pelo vidro do berçário.
Meu momento, o momento do meu marido, o momento do meu
filho... foi uma aula de obstetrícia pra se ensinar o que jamais deve ser feito
a uma família que está nascendo.
Muito mais de 2 horas sem conseguir dormir, esperando levarem meu filho pra mim, ele chegou... a primeira coisa que fiz foi tirar as luvinhas, queria ver os dedinhos dele e beijar as suas mãozinhas. Depois tirei toda a roupinha, queria vê-lo. Fiz questão de dar o "primeiro banho", eu não sabia de nada do que haviam feito nele... a aspiração, a sondagem, o banho, o colírio, o nitrato de prata... eu não sabia de nada.
Muito mais de 2 horas sem conseguir dormir, esperando levarem meu filho pra mim, ele chegou... a primeira coisa que fiz foi tirar as luvinhas, queria ver os dedinhos dele e beijar as suas mãozinhas. Depois tirei toda a roupinha, queria vê-lo. Fiz questão de dar o "primeiro banho", eu não sabia de nada do que haviam feito nele... a aspiração, a sondagem, o banho, o colírio, o nitrato de prata... eu não sabia de nada.
O ponto do marido destruiu a minha vida conjugal. Passei
meses sentindo dor ao fazer sexo. Meu marido pensava que eu o traía. Rejeitei
meu filho no primeiro instante, me deram ele já alimentado com leite
artificial, o que dificultou imensamente a pega no peito, ele só queria dormir.
Ficavam pesando ele várias vezes ao dia, levavam ele. Eu queria saber o que
estavam fazendo, queria ir junto. Não deixavam.
Me deram ordem pra amamentá-lo de 1 em 1 hora, porque senão ele teria
que ser picado de novo pra medir a glicose e tomar soro glicosado. Não íamos
sair do hospital. Assim fiz semanas a
fio, mesmo depois de ir pra casa, de medo de voltar pro hospital.
Poderia ter sido diferente se eu tivesse informação, se as mulheres da minha vida tivessem conversado sobre parto e nascimento comigo, se eu soubesse o que me esperava. Mas não posso mais lamentar o parto e o nascimento do Pedro, nem culpar as mulheres da minha vida. Foi Pedro em seu nascimento que abriu portas pras minhas buscas pelo ativismo pela humanização do parto e nascimento. Foi através da minha experiência de parto que nunca mais parei de me informar, de estudar... Depois desse parto tive duas experiências muito diferentes... Um parto humanizado hospitalar e depois um parto domiciliar. Descobri o que eu tinha perdido. Descobri o que é bom. Descobri que um parto pode ser lembrado com sorrisos, alegria e vontade de reviver de novo aquele momento tão sublime!, e não com angústia, tristeza e sofrimento na lembrança do dia mais importante da vida de uma mulher.
Tive vontade de contar pra todo o mundo, o quanto é bom parir!! Como tomar a poção do amor e se apaixonar imediatamente pelo seu bebê e por quem esteve ali te ajudando com amor, respeito, cuidado.
Tive vontade de contar pra todo o mundo, o quanto é bom parir!! Como tomar a poção do amor e se apaixonar imediatamente pelo seu bebê e por quem esteve ali te ajudando com amor, respeito, cuidado.
O que eu posso dizer a partir das minhas experiências é: mulheres, se informem. Saibam que o parto normal pode ser lindo, humanizado, algo que seja lembrado com saudade. Pra isso é importante saber o que te espera, o que pode ser evitado, o que pode ser planejado.
Mas também preciso dizer... mulheres, nós estamos nessa busca.... mas não se culpem se, mesmo depois de se informar, de envolver o marido, de contratar doula, de se planejar, de escolher médico, hospital, fazer plano de parto... não se culpem se não conseguirem se livrar de violências obstétricas. Não se culpem se mesmo depois de muita busca ainda caírem em uma cesariana desnecessária... o sistema não facilita as coisas pras mulheres. Nem sempre conseguimos driblar o sistema. Não é culpa sua. Não é.
Pari em um hospital escola... Isso.. infelizmente foi assim que a maioria dos obstetras aprenderam....
É com muita determinação e persistência que vamos conseguir mudar o sistema de 1 em 4 mulheres vítimas de violência obstétrica (https://fpabramo.org.br/2013/03/25/violencia-no-parto-na-hora-de-fazer-nao-gritou/).
Vamos persistir na luta pra que obstetras se disponham a mudar esse padrão de altíssimas taxas de cesariana! (http://www.ans.gov.br/planos-de-saude-e-operadoras/informacoes-e-avaliacoes-de-operadoras/taxas-de-partos-cesareos-por-operadora-de-plano-de-saúde)
Não nos calamos, pelas mulheres que ainda vão parir!
Mas também preciso dizer... mulheres, nós estamos nessa busca.... mas não se culpem se, mesmo depois de se informar, de envolver o marido, de contratar doula, de se planejar, de escolher médico, hospital, fazer plano de parto... não se culpem se não conseguirem se livrar de violências obstétricas. Não se culpem se mesmo depois de muita busca ainda caírem em uma cesariana desnecessária... o sistema não facilita as coisas pras mulheres. Nem sempre conseguimos driblar o sistema. Não é culpa sua. Não é.
Pari em um hospital escola... Isso.. infelizmente foi assim que a maioria dos obstetras aprenderam....
É com muita determinação e persistência que vamos conseguir mudar o sistema de 1 em 4 mulheres vítimas de violência obstétrica (https://fpabramo.org.br/2013/03/25/violencia-no-parto-na-hora-de-fazer-nao-gritou/).
Vamos persistir na luta pra que obstetras se disponham a mudar esse padrão de altíssimas taxas de cesariana! (http://www.ans.gov.br/planos-de-saude-e-operadoras/informacoes-e-avaliacoes-de-operadoras/taxas-de-partos-cesareos-por-operadora-de-plano-de-saúde)
Não nos calamos, pelas mulheres que ainda vão parir!